Texto originalmente postado em 26 de junho de 2008 no blog Bandoleros UNESP
Primeiro vou passar pra vocês uma regra prática que uso quando vejo alguém falando a respeito da Teoria da Evolução, doravante chamada Biologia Evolutiva, uma nomenclatura um pouco melhor que engloba as teorias criadas durante o séc.XX:
1 – toda vez que vocês virem um leigo falar de Biologia Evolutiva, dêem 1 passo pra trás por cautela;
2 – toda vez que for um jornalista, dêem 2 passos para trás;
3 – que for um médico, três passos;
4 – um físico, 4 passos;
5 – um biólogo de outra área que não a Biologia Evolutiva, 5 passos.
Isso porque a Biologia Evolutiva é uma ciência contra-intuitiva, ou seja, que vai contra o senso comum e o bom senso que são base para a nossa racionalidade-resolvedora-de-problemas diária. É como afirmar que a Terra gira em torno do Sol: se você falar isso pra um índio de uma tribo perdida no meio da floresta amazônica sem explicar passo a passo como isso é possível e provar por a+b usando uma linguagem e exemplos que façam sentido pra ele, ele vai te chamar de imbecil com toda a razão, pois a idéia intuitiva é a de que o Sol gira em torno da Terra.
Isso que eu fiz foi uma maneira discreta de utilizar uma falácia ad hominem para dizer que, apesar de entender bem a Biologia Evolutiva em certos pontos, Watson está usando uma Biologia Evolutiva à moda da casa, uma vez que essa não é a área dele e ele não entende todas as nuances epistemológicas desse pensamento.
Bom, vamos então analisar as afirmações de Watson sob o ponto de vista da Biologia Evolutiva:
“Não há uma razão firme para prever que a capacidade intelectual de povos geograficamente separados em sua evolução deva mostrar-se identicamente evoluída.”
Essa afirmação foi baseada em uma possibilidade verdadeira, mas há vários problemas na mesma:
1 – Confundir o conceito de “inteligência” com o conceito de “capacidade intelectual”, que o senhor Watson está utilizando à moda da casa, segundo seus preconceitos.
Expressar inteligência como “capacidade intelectual” é incorrer em inúmeros erros.
Primeiro, ignorar que não existe consenso entre neurocientistas e psicólogos sobre a questão.
Segundo, ignorar que existem diferentes tipos de inteligência, como inteligência corporal, inteligência espacial, criatividade, habilidade lógico-matemática, habilidade lógico-abstrata, habilidade de comunicação oral e escrita (estou inventando alguns desses conceitos, já que não conheço muitos, só pra dar uma idéia do que deve ser levado em conta na questão), muitas das quais ainda não podem ser quantificadas como o termo “capacidade” sugere.
Aliás, o próprio termo “capacidade” no seu sentido conotativo sugere mais e melhor, o que é um juízo de valor humano que não encontra embasamento na Biologia Evolutiva, que é dependente da variabilidade e, portanto, está livre desse idealismo platônico.
“Capacidade intelectual” poderia ser entendida como a habilidade de um indivíduo tirar conclusões acertadas a respeito do mundo à sua volta (se bem que esse conceito deve ter outro nome, e bem mais apropriado). Essa habilidade poderia realmente ser útil em alguns ambientes (nem todos, seria inútil, por exemplo, num ambiente com alimento farto, sem predadores e sem machos ou fêmeas concorrentes: ou seja, no jardim do éden), e não há motivo para supor que os diferentes povos precisaram menos dessa habilidade, apesar de poder-se discutir se as mesmas soluções foram encontradas em ambientes diversos. Mas concluir daí que uma solução ou outra foi melhor ou pior é pretensão e juízo de valor de cientista preconceituoso.
2 – Presumir que uma hipótese que pode ser levantada de maneira indutiva a partir da Biologia Evolutiva (a de que populações separadas geograficamente evoluíram sob pressões ambientais distintas e nelas, portanto, foram selecionadas estratégias comportamentais diferentes para resolver os problemas apresentados pelo meio, ou seja, inteligências e maneiras de perceber o mundo diferentes) é verdadeira quando não existem estudos que a tenham testado de maneira hipotético-dedutiva.
Primeiro é preciso lembrar que definir e medir capacidade intelectual não é da alçada da Biologia Evolutiva.
Porém, uma vez que as neurociências e a psicologia cheguem a algum tipo de consenso quanto à definição de inteligência (ou não, utilizando-se de vários critérios diferentes, o que seria até mesmo mais sensato), um estudo desse tipo realmente poderia ser feito e essa hipótese poderia ser testada com as populações atuais.
Porém, esse estudo hipotético-dedutivo também não é do âmbito da Biologia Evolutiva, e sim das mesmas neurociências e psicologia.
E, até que o estudo seja feito, não se pode concluir que a hipótese é verdadeira. Watson está confundindo o conceito de “Plausibilidade Biológica”, ou seja, uma explicação plausível dentro do corpo teórico de uma teoria biológica para um fenômeno qualquer, que pode gerar uma hipótese com mais chance de ser verdadeira do que a hipótese gerada por outra forma aleatória, com uma verdade científica já testada por estudos. E mesmo uma verdade científica não é absoluta, já que a ciência abdicou da verdade quando abraçou a dúvida como ferramenta metodológica.
3 – Confundir média e moda e sua importância nas características de uma população, além de ignorar a importância da variabilidade.
Isso é um erro comum. Quando ele fala da capacidade intelectual de um povo como um todo, ele está falando da média da inteligência dessa população ou da moda da inteligência?
Por que se estiver falando da média, vamos inventar uns índices absurdos pra dar idéia dos erros que podem acontecer, lá pode ter simplesmente 10% da população de gênios, mas um elevado índice de paralisia cerebral, uns 30%, vamos supor, o que jogaria a média lá embaixo.
Se ele estiver falando de moda, ou seja, do valor mais comum encontrado numa população, pode até ser mais representativo. Se numa população a moda de um tipo de inteligência é maior do que noutra... porém, será que entre populações diferentes todos os tipos de inteligências testados vão apresentar a moda mais elevada na mesma população? E será que um estudo desse iria levar em consideração os saberes locais? E o nível de escolaridade? Watson esquece que, como dizia o Osorinho, só dá pra comparar ovo com ovo de pata, não dá pra comparar ovo com rapadura.
Mas de qualquer jeito, moda e média não dizem nada sobre um indivíduo em si. Isso por que são aproximações estatísticas que simplesmente precisam ignorar uma realidade sobre a qual a Biologia Evolutiva lançou seus alicerces desde o princípio: em uma população, não existem 2 indivíduos iguais. Eles podem ser parecidos, mas nunca são iguais, e aí entra a imprevisibilidade do mundo, que um cientista muito engessado vai sentir muita dificuldade em compreender, mas que pra vocês da história e serviço social é mais fácil perceber. E, porra, como isso faz do mundo um lugar bonito pra se viver!
“Nossa vontade de encarar faculdades racionais iguais como um patrimônio universal da humanidade não bastará para fazer com que seja assim.”
É verdade, mas a vontade de que uma hipótese plausível seja verdadeira também não bastará sem um experimento adequado e sem muita reprodutibilidade. E olha o pulo que ele deu: de “capacidade intelectual”, já virou “faculdades racionais”. Além de reduzir inteligência a um único aspecto, ainda presume que, em algum ambiente, racionalidade científica foi selecionada e noutro não. Na verdade, se alguma coisa foi selecionada ao longo do tempo, foi a nossa capacidade de produzir senso comum, e, logo, cultura. Ciência e racionalidade nesse sentido são tão recentes que afirmar que passaram por seleção direta é risível. Ele também esquece que a inteligência é uma faculdade tão rara na natureza que é praticamente impossível que tenha surgido mais de uma vez, então, se nós a temos em qualquer grau que seja, devemos a uma origem comum. A seleção poderia alterar algumas de suas características, mas não sabemos se isso de fato ocorreu.
“inerentemente pessimista sobre as perspectivas da África”
Se o Popper fala que a Biologia Evolutiva não é uma ciência porque não consegue fazer previsões sobre a evolução das espécies, como é que esse jumento está fazendo uma previsão sobre a África usando Biologia Evolutiva? E ainda uma previsão geopolítica?!?! Desde quando isso é nosso objeto de estudo?!?! Se isso não é pseudo-ciência, eu não sei o que é...
“Todas as nossas políticas sociais estão baseadas no fato de que a inteligência deles é a mesma que a nossa – enquanto todos os testes dizem que não é realmente assim”.
Primeiro, vamos só deixar marcada a pretensão de “nossas políticas sociais”, como se os americanos estivessem tentando resolver o problema da África, como se isso fosse da alçada deles, e como se os problemas sociais dos africanos não pudessem ser resolvidos pelos mesmos sem interferência externa se eles parassem de dar tiro uns nos outros e plantar comida ao invés de minas terrestres (um momento de reducionismo só pra dar uma respirada e eu lembrar que não dá pra pensar todos os pontos a respeito de uma questão sozinho).
Porém, concordo em parte, apesar de saber que ele não disse no sentido que eu concordo e não saber se essas pesquisas realmente existem e são confiáveis. Não sei se estudos sobre as diferenças de tipos de inteligência entre as etnias seriam úteis para as ciências sociais, mas quando fazia licenciatura a gente discutia que poderiam ser úteis estudos sobre como diferentes etnias preferem aprender as coisas, se isso não auxiliaria a desenvolver melhores metodologias de aprendizagem.
Para culminar: “As pessoas que têm de lidar com empregados negros descobrem que isso não é verdade”.
Desde quando os negros são sempre empregados dos brancos? E dizer "têm de lidar", parece que ele está falando de macacos e não de seres humanos, se bem que como Thomas Huxley eu preferiria ser parente, amigo e companheiro de um macaco do que de alguém que usasse uma frase dessas como argumento científico. E desde quando experiência pessoal é conhecimento científico? Ela pode até ser usado pra elaborar uma hipótese, mas até ela ser testada... E, de qualquer jeito, o preconceito da frase é tão evidente que nem é necessário discutir se ela tem ou não alguma base científica, é óbvio que isso é coisa da cabeça dele. Afinal, o Bruno é preto, mas tem uma alma branca, é até inteligente e bastante generoso e fácil de lidar. [Nota para algum desavisado que visite o blog: o Bruno é um amigo nosso e, portanto, a frase acima foi uma ironia a respeito do preconceito velado existente na sociedade brasileira e uma oportunidade ímpar de dar uma sacaneada com ele, se não gostou vá procurar outro blog]
Mas o professor de Harvard define Watson pelo que ele de fato é: um racialista. O geneticista o demonstra à farta na entrevista, falando de possíveis “genes da inteligência judia” e da “dominância no basquete” dos negros.
Bom, o problema aqui é que quem está sendo dogmático agora é o professor de Harvard, quando estabelece a priori que o racialismo seria um preconceito e que não pode ser testado no mundo natural. Na verdade, como já foi dito, é até plausível a hipótese do racialismo, porém ela ainda carece de experimentos científicos consistentes.
Posso até ousar levantar algumas questões a respeito. Por exemplo, a diferença da cultura afro-descendente no Brasil para a cultura Eurocêntrica. É interessante notar que os europeus prezam muito a visão na sua cultura: por exemplo, os rituais religiosos exigiam aqueles templos enormes, nosso modo de estudo depende do microscópio e do telescópio. Já os africanos gostam muito mais de cheiro, sabor (acho que é o Lévi-Strauss que fala que os portugueses foram às índias buscar “uma ardência na língua”, aliviar a falta de sabor que a cultura européia tinha) e expressão corporal – vide as religiões africanas, a capoeira. Não têem nada da assepsia e da inércia européias. Só hipóteses, que sempre necessitam de experimentos. Mas será que essa é uma questão estrita das ciências humanas como a história, a antropologia e a etnografia? Não discuto que o papel preponderante nesse caldo seja de fatores culturais. Porém, acho que se o biológico não limita a o edifício da cultura, ele é a base sobre a qual ele foi erigido, e, portanto, em algum lugar do passado, presente ou futuro pode influenciar nesses rumos, mas não determiná-los. O problema é que algumas mulas costumam interpretar a biologia não como um fator de propensão, mas como um fator limitante. Mas, quem pode dizer com segurança os limites de um ser humano? A ciência não é tão pretensiosa, alguns cientistas e alguns biólogos é que são.
“Ele acredita que certas características ou formas de comportamento observáveis entre grupos de seres humanos podem, de fato, ter uma base biológica no código que os cientistas podem se tornar capazes, eventualmente, de estabelecer, e que o ‘gene’ é algum espaço mítico neutro, e aquilo que alegadamente ‘mede’ ou ‘determina’ independe de fatores, variáveis e influências ambientais.”
Sempre concordando que não existe neutralidade em ciência, só um imbecil não reconhece isso. Ciência é sempre ideológica, mas diferentes ideologias podem trazer benefícios e malefícios diferentes para a sociedade, por isso viva a diversidade e o anarquismo teorético e metodológico do Feyerabend. O problema do Watson é dar importância demais aos genes. Primeiro ele esquece que gene fica escondido lá dentro da célula, e portanto não encontra com o ambiente e não é alvo de seleção. Seleção age sobre fenótipo. Só algumas mulas geneticistas e biólogos moleculares não percebem isso, eles e o Richard Dawkins, outro imbecil que acha que o objeto de estudo da Biologia Evolutiva é a religião e que, portanto, é objetivo dela provar que Deus não existe. Tirando isso, há outros fatores de herança que precisam ser levados em consideração. Por exemplo, o próprio desenvolvimento humano, que é influenciado pelo organismo da mãe. Outro o DNA mitocondrial. Outro é o caso de vírus que se integram no material genético, 10% do nosso DNA é feito de vírus, e como isso influi na evolução é uma pergunta muito importante hoje. Fora isso, existem outras questões, outras formas de herança que têm sido discutidas hoje e que ainda não aprendi, mas que vão além dos genes.
Gates se diz constrangido com a história dos genes do basquete, mas não perde a elegância. Lembra para Watson o que o pai lhe dizia quando via as quadras cheias de jovens negros: “Se estudássemos cálculo como estudamos basquete, estaríamos dirigindo o MIT”.
Aqui um caso clássico de aderência do oprimido ao opressor: por que diabos o MIT é mais importante que o basquete? Gates precisa rever urgentemente os próprios preconceitos se quer auxiliar a derrubar os preconceitos da sociedade onde vive.
Watson tem que se lembrar que conhecimento científico não é sinônimo de melhores condições de vida para a população em geral, porque a academia geralmente se preocupa mais em saber as coisas do que em colocar comida na barriga dos outros.
Antes de concluir, é preciso lembrar que um homem não é feito só de razão, ou só de inteligência, ou só de cognição. Ele também tem sentimentos, vontades, sensibilidades, religiosidade, espiritualidade, moral, ética e tantas outras coisas sobre as quais nem a Biologia Evolutiva, nem as neurociências, nem nenhuma outra ciência pode se pronunciar, mas sem os quais nós simplesmente seríamos incompletos.
Pra concluir, experimentos científicos não são a nossa única fonte de resposta pros problemas da vida diária, então vamos nos aproveitar do nosso senso comum e do nosso bom senso pra pensar um pouco essa questão. Facilidade de aprendizagem é um negócio bem distribuído, tem gente que tem mais tem gente que tem menos, mas a esmagadora maioria dá pro gasto. Oportunidade de estudar é um negócio mal distribuído, pouca gente tem. E, entre quem tem oportunidade de estudar, vontade de usar a inteligência e estudar é que é um negócio raro. Todos nós quando nos reunimos adoramos exercitar nossa soberba e nossa língua ferina pra dar umas boas gargalhadas e falar do “povo burro” com o qual convivemos (eu vou contar umas histórias nessas férias que vcs vão morrer de rir, Gabriel). Mas a verdade é que ser “elite intelectual” envolve também opção, e tem pessoas que simplesmente deram prioridade a outras maneiras de serem felizes.
domingo, 3 de janeiro de 2010
Texto antiiigo: Algumas considerações pessoais sobre o Racialismo do Dr. Watson
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